PARA ALÉM DO “aDeus”

19/10/2015 10:28

Frederico Spencer

 

 

 

“mais uma tarde está indo

                                  embora

a noite já se arruma com suas luzes”.

 

Miró

 

    Quando leio um livro de poemas enfrento, de cara, algumas perguntas interessantes: qual a função da poesia para o poeta?  Qual a função da poesia para o mundo e ainda, qual a função da palavra para o poeta? O caminho mais curto, se este existe, é começar pela última pergunta, neste caso “os últimos serão os primeiros”. A partir daí buscar as respostas que faltam neste quebra-cabeça.

    A palavra é a ferramenta primordial do poeta para exercer seu ofício. Nesta relação deverá haver além do amor incondicional, um estreito relacionamento entre ambos, neste caso, o amor não pode ser platônico, mas carnal.

    Para se escrever um bom texto literário é preciso, antes de tudo, conhecer o signo e suas multifaces, esmiuçar sua alma, despir a palavra de seu primeiro encanto - que é o maior problema para aqueles que gostam de escrever, entregar-se no seu primeiro beijo. Antes de assumi-la deve-se desconfiar dela, de sua plástica, de sua estética, de sua prosa. O foco é sua alma, dissecar seu interior em busca de seus mistérios - qual medusa ela recusa o olho no olho - portal de seus medos.

    Miró mostra esse poder de trazer ao mundo o conteúdo simbólico de sua alma de poeta, não se entrega à atração feminina do símbolo, ao contrário, retira dele a substância necessária para transformar em matéria viva suas inquietações de artista vivente num mundo antagônico: “As pessoas estão passando / para mais uma segunda-feira / eu sentado no banco da praça / ainda sou domingo”. Forjando dessa maneira, numa bigorna, o conteúdo de seu pensamento estético, do seu “estar no mundo”.

    No verso: “olhei para o passado / as folhas do calendário / caindo”, a poesia retoma seu papel, desmistificando-se em relação ao poeta, de transformadora da realidade, jogando escritor e leitor a outro mundo: subjetivo e rico de significações, transcendendo o cotidiano para outro universo sem datas para acabar, o homem alcança sua infinitude através da escrita, documento de sua estada neste planeta, sem a solidão aparente da vida: “solidão é no caixa eletrônico / esquecer a senha”.

    Assim é Miró e sua poesia, todas as perguntas foram respondidas.